Pensamentos Prensados

terça-feira, março 27, 2007

Estrelas de vidro (hai-kai)


Beba e esqueça,
quebre as garrafas e dance
– beba comigo

sábado, março 17, 2007

A última crônica


* Não, não é a minha última crônica. É apenas um texto que fala como seria a última crônica de diversos tipos de escritores.


A última crônica sempre complicará a cabeça do escritor. Manter os temas trabalhados ou falar sobre algo diferente? Refletir sobre a vida em geral ou a própria vida? Escrever uma crônica pequena, sucinta, ou a maior de todas? Fazê-la divertida ou séria? Ou então tentar a difícil e agradável missão de trabalhar com essas sensações distintas ao mesmo tempo? Se a crônica é uma conversa com o leitor, faltam palavras adequadas para a despedida.

Sem saber o que escrever, o escritor deve silenciar e refletir. Precisa descobrir que a última crônica não pode ser somente sobre idéias, pensamentos ou sentimentos. A última crônica deve ir além de tudo isso. Não há mais razão para se esconder entre as frases. A última crônica deve ser o reflexo fiel do próprio escritor. Não basta mais dar vida a ela. É preciso que o autor se transforme em crônica.

A última crônica do escritor famoso, por exemplo, não será a última que ele apresentou antes de morrer. Será aquela que ficará anos e anos escondida em alguma gaveta ou caixa, redescobrindo o gosto do anonimato perdido. Já o último texto do escritor anônimo é o sonho que morreu ou a esperança que cansou de esperar os aplausos.

Para o cronista idoso, a última crônica é um adeus ao tempo e uma saudação à eternidade. Para o jovem, será a vitória da impaciência sobre o talento. E a última crônica do escritor de meia-idade pode esperar anos para saber mesmo se terá a honra de ser a última. Ou apenas a primeira de uma nova fase.

A última crônica do poeta será o silêncio. O silêncio de quem alcançou a beleza suprema das palavras e sabe que não há mais coisas necessárias a dizer. Se o escritor for romântico, é provável que nunca chegue até a última crônica enquanto seu coração não for definitivamente quebrado ou consertado.

A última crônica do depressivo suicida é a única que todos lerão. Por outro lado, a última crônica do escritor amargo é mais uma que vai morrer de solidão. Para o melancólico, a última crônica será a última tentativa de entender a perda da felicidade ou de recuperar o sorriso.

O tempo obriga quem vive demais a encarar a morte várias vezes. E quem vive demais escreve várias últimas crônicas para familiares e amigos. A última crônica para os pais é escrita pela saudade. Aos amigos, a última crônica foi a última risada – que geralmente ignoramos que possa ser a última.

Mas o tempo também presenteia o cronista que quer viver. Para o filho que nasce, a última crônica não existe. O autor só escreve uma que nunca terá fim, nem mesmo depois da morte. Já a última crônica para a amada é escrita sem parar, como se simplesmente não houvesse amanhã. É a beleza que caminha feliz, mas oculta o medo de que o caminho seja finito.

Para o escritor do tempo, a última crônica é apenas o fim de um ciclo. A última crônica da primavera é a chuva no fim da tarde. Para o escritor do verão, ela só aparece depois que o sonho de uma noite acontece. O outono escreve diversas crônicas sobre as folhas que caem, mas a última ele reserva para a árvore que fica. E a única crônica do inverno começa e termina com os olhos no céu e nas ruas vazias da madrugada.

A última crônica do verdadeiro cronista será escrita na última página do seu caderno. Na última das páginas infinitas que enfim se tornaram finitas. E ele espera que nunca haja a última crônica do último cronista, a última vida de quem realmente viveu.

domingo, março 11, 2007

A boca de Ária (conto)


Chovia muito naquela tarde de sábado. Dezenas de cachoeiras desaguavam na cidade e milhões de gotas dançavam e se espatifavam nos prédios e nas ruas. Viviam sua queda, viviam sua glória. Da sacada do meu apartamento, eu contemplava aquelas pequenas bombas ruidosas, explosões no céu. Eu estava molhado, úmido até as veias, sem camisa, músculos retraídos de frio. Fumava para aquecer a boca, castigada pelas gotas que o céu não conseguira mais abraçar. Um céu tenso e finito, que se desfazia em gotas impetuosas.

Estático, tremi quando uma mão aconchegante pousou nas minhas costas e queimou meus poros. Era Ária, minha doce Ária, mais silenciosa do que uma garoa. Não precisei me virar para saber que ela usava uma das minhas camisas velhas, que ia além da cintura do seu corpo delicado. Minha mão esquerda, na coxa dela, deslizava, massageava-a; meus dedos tamborilavam nela com carinho.

Ela estava abraçada a mim, seu rosto aquecia minhas costas nuas. Suas mãos dançavam no meu peito: os dedos subiam e desciam, beliscando-me sutilmente, e as unhas roçavam os pêlos, arrepiando-os. Sua respiração serena ressoava no meu coração, o sangue desacelerava. Uma harmonia envolvia meu corpo e eu fechava os olhos para ouvi-la melhor. A tempestade continuava, mas agora estava distante de mim. Pingavam apenas gotas finas no meu mundo.

A mão de Ária retirou meu cigarro e o jogou pela sacada; sabor ruim, deixa a boca azeda, ela dizia. A última baforada se desvanecia enquanto eu soerguia meus pulmões. Ainda havia um pouco de tensão em mim. Era um ponto seco, amargo, escondido, que Ária começou a procurar com os seus beijos molhados. Sua boca, delicada, saltava sobre minhas costas. Seus lábios, cortinas de carne, abriam-se e sorviam as gotas que escorriam pela coluna. Sua língua ia, voltava, girava; deixava rastros de saliva nos ombros, nas espaldas, perto da cintura. Era um fogo vivo úmido. Eu ofegava lentamente, segurando cada espasmo ao máximo.

Minha mão esquerda não descia mais pela coxa de Ária, agora passeava pela carne quente, carícias que interrompiam seus beijos. Virei a cabeça para ver as pálpebras cerradas, os gemidos tímidos que escorriam dos lábios arrebitados. Virei-me totalmente e a admirei por um instante, menor do que uma respiração, maior do que uma batida cardíaca. Os cabelos lisos, colados ao pescoço, sem alcançar os ombros. Fios negros que riscavam o rosto, tão lívido que os olhos castanhos escureciam. Rosto bonito, encantador.

E havia a boca, ah!, a boca de Ária! Duas ondas carnudas, roxas de desejo, que nunca se tocavam inteiramente. Sempre havia uma fresta, minúscula listra negra, de onde exalava uma mistura de ingenuidade e malícia. Pus o dedo sobre aquela fresta e pressionei o lábio superior para cima. Ela sorriu, sua língua serpenteava o dedo antes de abocanhá-lo.

Seus dedos finos tocaram minha testa, arrumaram minha franja. As mãos em concha no meu queixo, bailarina na ponta dos pés. A língua dançava e cantava. Eu acompanhava os passos que subiam pelos dentes, até o céu da boca. As línguas se uniam, rodopiavam; quando saíam do palco, as pontas se equilibravam no ar.

Os dentes de Ária esticavam meus lábios e sua língua abandonava o dueto para se apresentar ao rosto, ao pescoço, ao peito. Contorcia-se e contornava várias direções antes de atacar minha boca de novo. Nossos corpos se agarravam e os dedos se multiplicavam. Eu tentava respirar um pouco, mas Ária expulsava o ar, expulsava qualquer barreira que atrapalhasse a música. O tempo era só uma gota, sugada por nossos beijos.

A boca dela acalmou-se na minha orelha, fragmentos do ar vibraram com seu sorriso. "Vem", ela me sussurrou. Um som límpido, suave, que virou um beijo longo, incansável. No meu corpo, frêmitos infinitos. Minha boca era carne retalhada, abençoada. Saboreava pedaços de Ária, calor brando que ardia, e queria mais, muito mais. Eu queria tudo.

Ela se afastou sorrindo e tirou a camisa, revelando as gotas que reluziam no seu corpo alvo. A camisa fria, encharcada, ficou na sacada; Ária, a passos insinuantes, foi para o quarto e sentou-se na cama. Um rastro de calor me separava dela, das gotas que escorriam pelos seios firmes. Eram pontos prateados que desciam por seus bicos rijos, passavam por seu umbigo e morriam em seus dedos. A luxúria abrira as pernas, mas a timidez as protegia com as mãos. "Vem", a boca sussurrou, e eu percebi que a timidez era apenas um disfarce da sua nova provocação.

Eu fui e cada movimento do meu corpo dissolvia lentamente o quarto, o mundo. Só Ária deveria permanecer. Ajoelhei-me e não parei de beijá-la, de sorver suas gotas. Pernas, coxas, cintura, barriga, eu marcava cada pedaço do corpo. Ária, deitada, chamava o prazer e eu a obedecia, ia até sua boca, a seus lábios rosados, à sua língua, essência da carne. A boca de Ária me chamava, minha língua sentia o convite e escorregava pelos lábios, deixando-os ainda mais intumescidos.

"Vem, vem, vem", murmurava. Minha língua e minhas mãos se perdiam em círculos de carícias no seu corpo, eu me perdia nela. Sentia uma pele macia, que se confundia com a carne, sufocava-me em poros quase sempre sufocados. Beijava seu rosto ruborizado, minha língua na boca dela, meus dedos na boca dela, tudo ao mesmo tempo. Mal respirávamos, suávamos sem parar. "Vem!", ela gemeu em minha orelha.

Levantei-me e tirei as calças molhadas. As pernas também molhadas não tiritavam de frio. Ela riu, maliciosa, não esperava que o calor já estivesse tão intenso ali. Ária, ah!, minha ácida Ária!, sentou-se na cama, cabelos jogados para trás, minha língua e sua boca grudadas. Ela ia, voltava, mãos em mim, respirava sem respirar. Sentia toda sua boca, o céu, os dentes; afogava a língua em saliva e prazer, e ela a puxava mais para o fundo. Eu já não via mais o quarto. Porta, janelas, armários, tudo desaparecia.

Deitado na cama, ou no que deixava de ser uma cama, sentia os lábios de Ária no corpo. Sua língua chicoteava e amolecia cada canto da pele. Ária me apertava e arranhava, o suor ardia misturado ao sangue que escorria de meu peito. "Vem", ela escreveu em mim. Eu fui e a levei comigo para fora do quarto. Sua boca se contorcia, gritava por mim. Seu corpo queria o meu até ao fim. Ela não parou mais de me chamar: repetia a palavra em murmúrios, gemidos, espasmos, explosões. Eu a abraçava, a beijava, recuava e retornava cada vez mais inebriado.

Suados, corpos em ebulição e suores misturados, eu e Ária nos desfazíamos em gotas de prazer. Os lábios delas, calor carmesim, ferviam, queimavam minha língua. Sua boca era intensa, infinita. Eu, mais firme, mais leve, continuava a beijá-la. Loucos e hipnotizados, não nos víamos mais; nós apenas sentíamos, nos sentíamos. Éramos gotas em queda.

sábado, março 03, 2007

Os doze passos eternos - verso V (hai-kai)


Procissão

Sob as folhas secas,
março recolhe as cinzas
das esperanças vãs...