Pensamentos Prensados

sábado, março 17, 2007

A última crônica


* Não, não é a minha última crônica. É apenas um texto que fala como seria a última crônica de diversos tipos de escritores.


A última crônica sempre complicará a cabeça do escritor. Manter os temas trabalhados ou falar sobre algo diferente? Refletir sobre a vida em geral ou a própria vida? Escrever uma crônica pequena, sucinta, ou a maior de todas? Fazê-la divertida ou séria? Ou então tentar a difícil e agradável missão de trabalhar com essas sensações distintas ao mesmo tempo? Se a crônica é uma conversa com o leitor, faltam palavras adequadas para a despedida.

Sem saber o que escrever, o escritor deve silenciar e refletir. Precisa descobrir que a última crônica não pode ser somente sobre idéias, pensamentos ou sentimentos. A última crônica deve ir além de tudo isso. Não há mais razão para se esconder entre as frases. A última crônica deve ser o reflexo fiel do próprio escritor. Não basta mais dar vida a ela. É preciso que o autor se transforme em crônica.

A última crônica do escritor famoso, por exemplo, não será a última que ele apresentou antes de morrer. Será aquela que ficará anos e anos escondida em alguma gaveta ou caixa, redescobrindo o gosto do anonimato perdido. Já o último texto do escritor anônimo é o sonho que morreu ou a esperança que cansou de esperar os aplausos.

Para o cronista idoso, a última crônica é um adeus ao tempo e uma saudação à eternidade. Para o jovem, será a vitória da impaciência sobre o talento. E a última crônica do escritor de meia-idade pode esperar anos para saber mesmo se terá a honra de ser a última. Ou apenas a primeira de uma nova fase.

A última crônica do poeta será o silêncio. O silêncio de quem alcançou a beleza suprema das palavras e sabe que não há mais coisas necessárias a dizer. Se o escritor for romântico, é provável que nunca chegue até a última crônica enquanto seu coração não for definitivamente quebrado ou consertado.

A última crônica do depressivo suicida é a única que todos lerão. Por outro lado, a última crônica do escritor amargo é mais uma que vai morrer de solidão. Para o melancólico, a última crônica será a última tentativa de entender a perda da felicidade ou de recuperar o sorriso.

O tempo obriga quem vive demais a encarar a morte várias vezes. E quem vive demais escreve várias últimas crônicas para familiares e amigos. A última crônica para os pais é escrita pela saudade. Aos amigos, a última crônica foi a última risada – que geralmente ignoramos que possa ser a última.

Mas o tempo também presenteia o cronista que quer viver. Para o filho que nasce, a última crônica não existe. O autor só escreve uma que nunca terá fim, nem mesmo depois da morte. Já a última crônica para a amada é escrita sem parar, como se simplesmente não houvesse amanhã. É a beleza que caminha feliz, mas oculta o medo de que o caminho seja finito.

Para o escritor do tempo, a última crônica é apenas o fim de um ciclo. A última crônica da primavera é a chuva no fim da tarde. Para o escritor do verão, ela só aparece depois que o sonho de uma noite acontece. O outono escreve diversas crônicas sobre as folhas que caem, mas a última ele reserva para a árvore que fica. E a única crônica do inverno começa e termina com os olhos no céu e nas ruas vazias da madrugada.

A última crônica do verdadeiro cronista será escrita na última página do seu caderno. Na última das páginas infinitas que enfim se tornaram finitas. E ele espera que nunca haja a última crônica do último cronista, a última vida de quem realmente viveu.