Pensamentos Prensados

sábado, junho 23, 2007

O reflexo inquieto (conto)


Milhares de pessoas passavam e sumiam rapidamente naquele labirinto infinito, de corredores largos e extremamente brancos, quase transparentes. Tinham pressa, mas flutuavam sem se cansar; apesar da velocidade, seus rostos permaneciam rígidos, frios, sem contrações e emoções. Incontáveis portas se espalhavam pelos lados e eram o destino final de todos. Quando alcançavam a porta que deveriam encontrar, atravessavam-na e mergulhavam em um lugar totalmente diferente.

Assim como eles, eu deslizava por esse mundo vazio, atraído por uma força desconhecida que controlava todos os meus movimentos. Não conseguia parar, tampouco alterar meu ritmo. Era incapaz até de realizar ações simples como falar, virar a cabeça, fechar os olhos e erguer os braços.

Eu era igual a eles em quase tudo: flutuávamos calados, com gestos mecânicos, sem naturalidade, em direção a uma porta que nem tivemos chance de escolher. A única diferença é que eu percebia, ainda que efemeramente, as coisas ao meu redor. Pensar, porém, era uma tarefa árdua. Quando desenvolvia um pensamento, ele logo se dissolvia. Minha mente era uma vastidão vazia, pontuada por alguns lampejos ocasionais.

A impotência era tão grande que nem podia me desviar das pessoas, eu simplesmente as atravessava; elas, por outro lado, passavam por mim como se eu não existisse, como se ninguém existisse ao redor de cada uma delas. Pareciam estar todas cegas, pareciam só enxergar o nada.

Continuei a flutuar até parar diante de uma porta e transpô-la. Agora estava em um banheiro (por que eu estava lá?), com uma sensação estranha: acho que já estivera ali antes. Encarava-me no espelho, embora não soubesse o motivo. Tentava fazer algo diferente, mas sempre fracassava. Nada em mim me obedecia; eu agia por impulso, sem refletir. Tudo parecia previamente programado.

Vi minhas olheiras no espelho, mas não sentia cansaço. Molhei o rosto e fiz uma careta, mas não sabia se a água estava quente ou fria. Com a testa encostada ao vidro, mexi os lábios, mas não ouvi som algum. Cada gesto meu não parecia ser novo, apesar de não me lembrar dos anteriores.

Uma mulher morena entrou no banheiro (por que ela estava lá?) e parou do meu lado. Sorrimos e nos viramos, nossos perfis colados refletiam no espelho. Inclinei a cabeça, fechei os olhos e a beijei. Beijava-a sem saber o nome dela, sem sentir o gosto dos lábios dela, sem saber quem (ou o quê) nós realmente éramos. Deveria sentir algo, mas não conseguia.

Peguei a mão dela e, juntos, atravessamos a porta. Em vez de voltarmos ao labirinto branco, entramos em um quarto. Olhei-me no espelho do armário e vi que estava suando. Gotas escorriam pelo meu rosto, mas eu continuava sentindo nada. Era realmente estranho: o reflexo que acompanhava meus movimentos no espelho parecia muito mais vivo do que eu.

terça-feira, junho 12, 2007

Doze motivos para abolir o Dia dos Namorados (crônica)


Ai ai ai.

Nas palavras abaixo, exponho doze argumentos favoráveis à abolição do Dia dos Namorados. No momento em que você estiver lendo este texto, já contarei com proteção policial graças ao Departamento Federal de Defesa às Testemunhas Amigas da Sobriedade.

Se você se encaixa na categoria difamada e se sente ofendido, nem pense em retaliações ou atentados. Você não tem condições necessárias de planejar e executar algo eficiente. Uma almofada em forma de coração serve como presente de namoro, mas infelizmente não tem o mesmo poder de fogo que um revólver. Traga sua razão de volta e reflita sobre os motivos apresentados abaixo.

Motivo 1: economia. No Dia dos Namorados, as floriculturas jogam o preço dos seus produtos lá para o alto. Tudo culpa da demanda absurda. Espero que as flores nunca entrem no cálculo da inflação. Não haverá ministro da Fazenda que vá resistir no cargo.

Motivo 2: segurança. Sabe que aquele seu vizinho que não se contenta em compensar todas as mancadas do namoro com um simples jantar à luz de, digamos, duas velas? Tome cuidado se ele quiser fazer um coração na sala...com duzentas velas! O fogo dos apaixonados pode queimar sua casa literalmente.

Motivo 3: dignidade. Já parou para ver e ouvir as palavras que os enamorados preparam para derreter corações? É de causar náuseas. E não me venha com esse papo de sinceridade. Chamar a amada de chuchuzinho, tetéia ou algo do gênero é patético e deveria ser proibido. Onde está a Convenção de Direitos Humanos de Genebra quando mais precisamos dela?

Motivo 4: naturalidade. Casal de namorados passa metade do tempo sorrindo – a outra metade é brigando, é claro. Às vezes, lembram que é importante respirar. Nada contra sorrisos. Mas tudo contra sorrisos afetados, artificiais e banais. A afetação é tanta que tudo é motivo pra sorrir. E, de vulgar, já basta a tevê aberta.

Motivo 5: responsabilidade. Como é que vou cumprir meus compromissos em 13 de junho se tenho que consolar o amigo que não conseguiu reatar o namoro, abrigar o maluco que resolveu fazer um coração com velas e incendiou a casa, pagar a fiança do inconseqüente que foi preso por se declarar à amada com uma banda de heavy metal às três da madrugada e ir ao enterro do depressivo que não suportou passar outro ano sozinho?

Motivo 6: saúde. Fumaça de vela causa câncer nasal. Flores liberam substâncias alucinógenas. Declarações patéticas provocam ataques de histeria incuráveis. Excesso de sorrisos deforma o rosto com mais rapidez e não há plástica que resolva.

Motivo 7: ecologia. O sistema público de limpeza não dá conta de recolher tanto lixo no dia seguinte. O papel do embrulho leva de três a seis meses para se decompor. O plástico dos pacotes, cem anos. O vidro da garrafa de vinho, um milhão de anos. O tempo de decomposição do papel com declarações é impossível de estimar. O que é ruim dificilmente morre.

Motivo 8: comunicação. Já parou para reparar que os casais têm um vocabulário próprio, mais bizarro do que qualquer língua que possa surgir? No Dia dos Namorados, nem adianta puxar papo com pessoas comprometidas. A não ser que leve um tradutor ou um dicionário. Ah, aprenda rapidamente a gritar “sua casa está pegando fogo!” em namorês. Talvez seja necessário.

Motivo 9: filme. Comédia romântica-bobinha-com-açúcar-e-final-feliz na tevê? Com a mais nova queridinha de Hollywood? Meu deus, a tevê consegue ser mais vulgar do que eu imaginava! A Convenção de Genebra realmente é uma falácia.

Motivo 10: desenvolvimento humano. Namorar é a arte de inventar mentiras. Poupe sua criatividade para coisas mais úteis. Como aprender a fazer um “gato” com o fio da tevê a cabo do vizinho e ver o documentário “Namoro: um entrave ao progresso da humanidade” ou “Apague um incêndio apenas com um copo d’água”.

Motivo 11: música. O pior não é ter de agüentar as divas com seus falsetes e infinitas canções sobre o amor. O pior mesmo é ouvir as interpretações dos seus fãs. E pensar que só heavy metal dá cadeia. Incompreensível.

Motivo 12: existencialismo. Um terço da humanidade passa o Dia dos Namorados alienado e outro terço fica chorando porque não consegue estar na mesma situação (não me peça para entender isso). A parte que resta lê textos como este para escapar da maldição do relacionamento e não depender de outra pessoa para ser feliz. Muitos já falharam nessa missão. Por eles, nenhum minuto de silêncio, por favor.

segunda-feira, junho 04, 2007

Os doze passos eternos VIII (hai-kai)


Eternidade

Olhos despertos!
Frio junho matinal
na névoa sem mundo