Pensamentos Prensados

quarta-feira, abril 11, 2007

Adeus, garoa (conto)


“Já não lembro mais quando foi a última vez em que nós nos encontramos, Stella. Eu vi anos nascerem e morrerem sem ter a sua companhia. Quantas madrugadas insultei com meus gritos desesperados sem saber se você ainda pensava em mim. Quantas tardes fiquei deitado na cama recordando o passado sem ter ninguém com quem desabafar. E quantas manhãs acordei com a esperança de encontrar uma nova garota. Mas ninguém escutou meus berros, ajudou a me reerguer ou me olhou com carinho. Ninguém. Estou cansado desta vida, Stella. Depois de tanta procura, só me restaram decepções. Se a eternidade realmente existe, eu já a alcancei quando estive com você. Por isso, não sinto raiva do mundo, mas confesso que não tenho mais vontade de acompanhá-lo. Ou melhor, assombrá-lo. Hoje sou apenas um fantasma. Estou morto desde o dia em que perdi você.

As minhas mãos tremem enquanto escrevo esta carta, minha querida. Não posso mais ignorar a decisão que venho adiando há meses. Não me resta mais nada para continuar. Todos ao meu redor parecem tão felizes, como se compartilhassem algo que não sinto há anos. Eles vivem o amor e nele se sustentam. Parece-lhes tão simples esse ciclo de recomeços e fins. Eu não acredito nisso. De que adianta recomeçar quando sei que dificilmente chegarei novamente a um grau de felicidade tão alto? Continuo a acreditar que só se encontra uma mulher inesquecível em toda a vida. E você é a minha mulher inesquecível, Stella. Posso beijar dezenas de mulheres, mas só o sabor dos seus lábios ficará. Posso abraçar quantas garotas quiser, mas só o seu perfume continuará em mim. Posso me divertir com tantas outras, mas só guardarei as suas risadas. Você implorou, mas eu não consegui. Meu amor é você. Como posso esquecer uma mulher inesquecível?

Não sei mais o que escrever. São tantas coisas a serem ditas, mas não sei como colocá-las no papel. Temo usar palavras erradas; não quero que pense que estou desesperado, inconformado. Não sei como explicar, mas me sinto tranqüilo. É estranho, eu deveria estar chorando, suplicando por sua presença, Stella. Deveria lutar até o fim, convencer você a abandonar o seu namorado. Queria que você voltasse para mim, mas agora não adianta mais. Tudo está acabado para sempre. Enquanto você e ele estão se divertindo em alguma festa idiota, eu, sozinho, acabo de chegar a uma decisão irrevogável; as circunstâncias me obrigaram a tomá-la. Como pode a vida ser tão bela e tão cruel? Doses raras de felicidade não são suficientes para encarar a melancolia do cotidiano. Estou cansado, Stella. Estou morto, apesar de meu coração insistir em bater.

Chove lá fora enquanto escrevo. Limpo meus olhos e observo a noite pela janela aberta. Lá está a garoa, iluminada pela luz dos postes. Lá está a garoa que brilha, a mesma da nossa última noite. Até o nosso fim foi belo; não houve brigas, discussões, lágrimas. Você preferiu terminar o relacionamento e eu simplesmente aceitei. Não queria concordar, mas fiquei tão paralisado que não soube me opor e machucar você. Que dor silenciosa perpassou o meu peito, que dor silenciosa me acompanhou pelas ruas no fim daquela madrugada. As poças refletiam as estrelas. A chuva roubara a eternidade. O céu azul do nosso primeiro dia nunca mais voltaria. Tudo isso passou pela cabeça, mas me recusei a chorar até agora. Jurei que nunca faria isso, mas falhei. A vida não é justa, Stella. Levamos anos para atingir nossos sonhos e ela se aproveita de nossas próprias falhas para destruí-los. Abrimos mão de lembranças preciosas para manter as promessas e ela simplesmente ignora o nosso sacrifício. Sei que sou responsável pelos meus atos, mas às vezes não há como impedir a ação do acaso.

O destino levou você, meu amor. É como se o vento me trouxesse uma folha às mãos e logo depois a soprasse para um lugar inatingível. Depois de tanto lutar, desisti de procurá-la, Stella. Sim, eu finalmente desisti de você e de tudo. Adeus. Acabou. Preciso sair de casa. Preciso respirar. Vou até a rua, até o meio dela, sentir a garoa, dançar entre os carros, voar e respirar pela última vez. A noite trágica se repete para que eu possa, enfim, partir. Gotas tão oníricas molham suavemente esta carta que escrevo... acho que a chuva está parando...é agora ou...ouço um barulho que vem deste lado da rua...”

***

Sob as mãos do cadáver, havia uma carta, mas ninguém ousou abri-la. As palavras, manchadas por lágrimas, foram enterradas junto com o caixão. Entre as flores depositadas sobre o jazigo, havia uma coroa com outra carta: “O som da última gota foi o ruído do telefone. Um carro, um casal bêbado, fim de festa; um acidente fatal nos reuniu de novo. Ainda vivo e agora não tenho mais o direito de morrer. Uma vida preciosa se foi. Meus cabelos continuam molhados; a garoa nos acompanhou até o fim, até a folha sucumbir à força do vento e cair ao chão. As poças refletem as estrelas mais uma vez antes do amanhecer. Você morreu e agora eu devo encontrar um outro céu azul. E outra mulher inesquecível. Adeus, Stella. Sua vida me matou, sua morte me ressuscitou. O meu amor não será mais seu”.