Pensamentos Prensados

terça-feira, fevereiro 06, 2007

O verdadeiro deus (crônica)


* Crônica escrita para a edição de novembro de 2006 do jornal-laboratório Zero, do curso de Jornalismo da UFSC, que foi um número especial sobre dinheiro. 


A crônica foi rejeitada por não ser "descontraída" (também não me avisaram que o texto deveria seguir tal linha). Ao menos, valeu pela experiência de escrevê-la em três horas, na correria, às vésperas do fechamento. Boa leitura.

Se existe realmente um deus que influencia nossas vidas, ele se chama dinheiro. Podemos (ou não) viver sem amor, felicidade ou fé; porém, viver sem dinheiro é quase impossível. É ele que estrutura o mundo e está presente em inúmeras questões: relações de trabalho, salários, impostos, classes sociais, comércio, inflação, serviços, investimentos, gastos, lucros, prejuízos, falências, empréstimos, dívidas etc.

O dinheiro é onipresente, é a alma do “sistema”, não há como fugir. Ele está acima do bem e do mal, pois pode tanto salvar vidas quanto destruí-las. Ou simplesmente ignorá-las. Ele, enfim, é um deus de infinitas faces, que variam de acordo com seus seguidores. E é nesse ponto que se encontra grande parte das tragédias humanas.

A corrida pela sobrevivência é tão frenética que criamos várias aberrações ao conceder um valor excessivamente importante para o dinheiro. Duas delas são o materialismo e o consumismo desenfreado. Não nos contentamos em suprir nossas necessidades; movidos pela vaidade, compramos objetos que aumentem nosso status e provoquem admiração alheia.

Assim, o dinheiro deixa de ser um meio e se torna um fim: compro, logo existo. Inebriados pelo efeito enganador do consumo, abandonamos o prazer e a alegria das coisas simples da vida e ficamos presos a produtos, eventos e vícios que serão esmagados pelo tempo. E, pior, tentamos mostrar aos outros que somos felizes desse jeito.

Culpamos o dinheiro pelos problemas que provoca, mas também deveríamos agradecer a ele. Afinal, o dinheiro nos ajuda a revelar a natureza humana. Revela-nos a facilidade que temos para ser pessoas mesquinhas, egoístas e individualistas e a capacidade de cometer atos estúpidos e irracionais.

Uma das conseqüências mais terríveis é a alta concentração de renda no mundo, em que 20% da população mais rica possui 80% de todas as riquezas, enquanto apenas 0,5% está nas mãos da parcela mais pobre. Usamos o dinheiro para criar uma fonte de misérias e vivemos a lógica do absurdo: em vez de usar o dinheiro para melhorar o planeta, nós o destruímos sob a bandeira do progresso – e da obtenção de mais dinheiro. E, se for preciso, pisoteamos também a democracia, os direitos humanos, a dignidade própria.

Vendemos a nossa suposta humanidade para roubar, seqüestrar, extorquir, matar, realizar qualquer tipo de crime. Nossa decadência só aumenta quando filhos assassinam pais para obter heranças, políticos desviam dinheiro, empresários sonegam impostos e direitos trabalhistas, e grandes corporações e fundos de pensão internacionais derrubam países como se fossem pinos de um boliche especulativo e provocam catástrofes humanas.

Vivemos em um mundo onde a vida simplesmente deixou de ter valor. Se o dinheiro é mesmo um ser divino, ele se assemelha mais a um deus da loucura e da morte, que louvamos com sacrifícios diários. Talvez não seja imortal, mas não adianta sonhar com um deicídio. O destino do dinheiro está ligado ao do planeta e não há mais como separá-los. Devemos, portanto, aprender a utilizá-lo corretamente ou continuaremos a viver como cúmplices da nossa própria destruição.