Pensamentos Prensados

terça-feira, dezembro 12, 2006

A cachorra e os pardais (conto)


* Deveria ser um conto infantil, mas ficou adulto demais.


O menino Tom vivia em um bairro tranqüilo e esverdeado. Era uma calmaria tão gostosa de saborear, principalmente no quintal de sua casa. Ipês amarelos e roxos, tibuchinas e garapuvus, arbustos de alamandas e hibiscos enfeitavam casas, ruas e morros. Nas árvores, cantavam gaturamos, sanhaços, sabiás. Algumas aracuãs cortavam o ar com seus vôos rasantes para atacar os pés de tangerina. Tom gostava de passar o fim de suas tardes observando essa paisagem.

Só havia um problema que o deixava chateado às vezes. Era Mizzi, sua cachorrinha de estimação. Já estava com ela há dois anos, mas ainda não se acostumara com a agitação da cadela. Vivia correndo atrás dos pássaros durante o dia. À noite, latia para morcegos, atacava lagartixas, caçava baratas e andava com elas na boca de lá para cá. Aliás, ela tinha mania de abocanhar tudo o que via: sacola, bolinha de tênis, chinelo, pedra, pedaço de madeira; enfim, nada escapava de sua curiosidade e fúria.

No entanto, quando menos se esperava, ela se jogava sob as pernas do menino e ficava quieta, como se admirasse a paisagem junto com ele. Também gostava de ficar deitada na calçada para tomar banho de sol e abanar a cauda para conseguir carinho. Não é à toa que Tom achava Mizzi extremamente imprevisível, muito mais do que a maioria das pessoas. E, por isso, gostava muito dela. Somente se esquecia disso nos momentos em que ela corria feito uma louca atrás dos pobres pássaros que cantavam e ciscavam pelo quintal.

O alvo preferido de Mizzi eram os pardais. Tom não compreendia essa perseguição e resolveu prestar mais atenção nesses pássaros. Descartou a hipótese de que cantavam mais ou pior que os outros; os sabiás eram mais vaidosos e as aracuãs, muitíssimo mais barulhentas. Também não era porque ciscavam a comida dela, pois os sanhaços eram igualmente atrevidos. Tom ficou confuso: o que os pardais tinham de especial?

Semanas se passaram sem conseguir a resposta até que um dia foi para o quintal logo depois de ter voltado da escola e tomou um susto. Mizzi estava pendurada no muro, apoiando-se com suas patinhas na beirada. A princípio, Tom ficou com medo. Será que era um ladrão? Mas não era, pois os cachorros da vizinhança não latiam.

A própria Mizzi não ladrava, apenas olhava para o outro lado do muro como se mirasse um alvo. Tom aproximou-se e riu. Havia um bando de pardais, é claro! Surpreendeu-se com a intensidade com que chilreavam. Se não fossem pássaros, diria que estavam conversando. Que besteira, achou, sabia que pássaros não conversavam!

Pegou Mizzi no colo para que ela pudesse enxergá-los. E ela latiu como nunca. Tom achou graça e passaria a rir ainda mais nos dias seguintes. Era só os pardais pousarem no muro que a cadela saltava contra eles. Não era um muro alto, devia ter mais ou menos um metro e meio de altura. Se Mizzi fosse um pouco maior, é provável que conseguisse pular.

No fundo, sabia que a cachorra não queria saltar o muro para atacar os pardais. Ela gostava apenas de assustá-los, nunca chegou a machucar um deles. Vivia correndo atrás deles porque os pardais viviam provocando-a. É, sabe-se lá como, mas Tom tinha essa impressão e falava para todo mundo que via cena. Ele não sabia como havia começado essa rixa, mas achou melhor não interrompê-la.

Essa brincadeira entre a cachorra e os pardais durou vários anos. Foram inúmeras tardes divertidas. A atração nos churrascos era ver Mizzi apoiada no muro. Quando Tom contava aos amigos, ninguém acreditava. Então, sempre fazia questão de levá-los até a sua casa para provar que estava certo. Depois, resolveu tirar fotos. Era bem difícil tirá-las, pois nunca sabia exatamente quando Mizzi pularia conta o muro.

Com o tempo, essas fotos acabaram virando recordações. Mizzi envelheceu bastante, não tinha mais forças para correr e saltar pelo quintal. Vivia cansada e passava a maior parte do tempo dormindo. Os pássaros continuavam a gorjear, principalmente os pardais, mas ela deixou de se irritar com eles. Eram raras as ocasiões que ainda ladrava. Quando fazia isso, os pardais procuravam animá-la a continuar assim. Eles tinham saudades da Mizzi do passado e se recusavam a aceitar que o tempo tivesse levado aquela brincadeira embora.

Tom crescera; agora era um rapaz sempre ocupado, com diversas coisas para fazer. Toda tarde, porém, ele buscava um jeito de passar, pelo menos alguns minutos, ao lado de Mizzi. As risadas haviam diminuído. Tom sabia, sentia que o fim se aproximava. Uma parte dele dava os seus últimos suspiros e ele se perguntava se estava preparado para isso. Era quase adulto, mas o coração de menino ainda batia no seu peito.

Um dia, chegou à sua casa durante o entardecer. O pôr-do-sol estava espetacular. Nuvens delgadas deslizavam pelo céu; o sol, que se escondia lentamente atrás de um morro, brincava de pintá-las de dourado, rosa, alaranjado. Tom foi para o quintal e se surpreendeu ao ver Mizzi sentada, olhando para o muro. Era uma cena que jamais se esqueceria. A cadela, que sempre fora tão agitada, agora inspirava serenidade. Seu rosto abatido enxergava muito além de Tom. Seu focinho, embranquecido pelos anos, farejava lembranças.

O rapaz sabia do que se tratava. Sabia no que ela estava pensando. Pegou-a no colo e pulou o muro. Como a casa ao lado estava vazia, não haveria problema. Soltou Mizzi, que correu. Vasculhava cada canto daquele novo quintal, latia para qualquer barulho que ouvisse. Fazia tempo que Mizzi não se divertia tanto, Tom percebia isso. Quanto tempo passaram ali ele nunca soube dizer. Era tudo tão marcante que ele ignorava a penumbra que se adensava. O tempo, porém, o fez voltar a ser frágil.

Mizzi resolvera se deitar no gramado. Estava exausta. Tom preferiu esperar um pouco antes de voltar para a casa. Foi, então, que os pardais apareceram. Foi a maior revoada que o jovem viu em toda em sua vida. Os pássaros pousaram silenciosamente ao redor da cachorra, que ofegava sem parar. Tom estava estático. Entendia o que acontecia, embora se recusasse a entender. Os pardais chilreavam leve e suavemente. E os olhos de Mizzi brilharam pela última vez.