Outro ano (crônica)
Esse mundo sob ti muda completamente quando chegas com um brilho tão intenso, como se reverberasses tudo que pulsa. Até o que deveria estar morto renasce e explode com teu olhar azul-profundo.
Tu crias um universo magnífico de euforias, com tudo sob controle, ao teu comando. O calor convidativo, a luz transcendental, as nuvens esquivas. Por ti, esquecemos os sonhos de verão e reverenciamos teus dias e tuas noites.
Passamos a querer acordar diante do sol que faz o presente se paralisar para caminharmos em manhãs frescas, colhendo os melhores gostos para nossas mentes. Queremos rir em tardes amareladas como fotografias marcantes e vê-las partir em vestes douradas, vermelhas, alaranjadas, rosas e lilases.
Queremos correr contra o vento em noites que não nos esfriam para nos expor ao imprevisto, ao improvável, ao impossível, e repousar após madrugadas memoráveis, em um sono que renova tudo o que somos.
E, quando o dia seguinte chegar, queremos enganar o tempo para lembrarmos tudo exatamente do que jeito que foi. Cada intenção, cada ato, cada reação, cada brilho.
Teus encantos são a única coisa de que precisamos novamente e tentamos encontrar uma fórmula para mantê-los indefinidamente. Teu sabor de glória e eternidade vira um desejo, um mantra, uma obsessão. Tu nos fazes flutuar mais e mais alto e nunca nos cansamos de rir de surpresa ao admirar os locais onde a vida se revelou para nós.
Entretanto, cedo ou tarde, essa energia se dissipa e as emoções secam e quebram-se diante da dureza de palavras repentinas, confusas, sem desejo por algo maior do que momentos efêmeros. Tudo fica indefinido: teu olhar continua azul-profundo, mas não aquece mais com o mesmo vigor, e, às vezes, esconde-se e chora por qualquer motivo.
O que vimos começa a se distanciar; o que ouvimos, a se calar; o que sentimos, a se perder. Só restarão imagens a serem borradas pelo tempo, conversas misturadas pelas memórias, dúvidas alimentadas pela nostalgia.
Em poucos dias, poucas semanas, o que valia uma vida inteira se restringe a ser um ponto fora da curva da rotina e da repetição. Olhamos para ti, em suplícios calados, mas o que te resta desaba e nos oprime.
Então tentamos te ignorar e evitar olhares enquanto morres, pálido, cinzento, sombrio, até a despedida constrita, antecipada, golpeada por uma nova frente de sensações, agora gélidas e fantasmagóricas.
Seria o fim completo do teu ciclo bendito e maldito, mas encontras refúgios em situações insólitas e irracionais. És o encontro casual e a conversa desajeitada; o melancólico aniversário de breves meses; a coincidência de nomes e lugares reunidos em momentos aleatórios; um número teimoso, uma letra ora reta, ora curva; um vento que derruba folhas fora de época.
Em algum ponto, um outro ano ainda percorre seu curso, com março cálido, abril ruidoso, maio transformador e junho indiferente. Esse mundo sob ti muda completamente com teus tons, céu de outono.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home